Ouvi dizer que O Irlandês, de Martin Scorcese, tinha recebido críticas excelentes.  Alguns dos mais importantes jornais do mundo disseram que era o melhor filme do ano e a melhor produção do século, ou coisa parecida. Eu também achei bom, muito bom, na verdade, mas é bem possível que tenha perdido alguns detalhes enquanto deixava que três ou quatro ideias atravessassem meu pensamento durante a longa exibição.

Pensei no Brenno Quadros, meu colega e fundador dessa...

Ouvi dizer que O Irlandês, de Martin Scorcese, tinha recebido críticas excelentes.  Alguns dos mais importantes jornais do mundo disseram que era o melhor filme do ano e a melhor produção do século, ou coisa parecida. Eu também achei bom, muito bom, na verdade, mas é bem possível que tenha perdido alguns detalhes enquanto deixava que três ou quatro ideias atravessassem meu pensamento durante a longa exibição.

Pensei no Brenno Quadros, meu colega e fundador dessa aventura de ler, que está morando em Santiago do Chile; pensei nos filmes da Marvel, especialmente na franquia dos Vingadores; pensei no tio Jorge, economista, que me deu a melhor resposta  quando indaguei numa reunião de família se alguém sabia de que armário duplex tinha saído tanta convicção retrógrada que avançava pelo planeta. Por fim, pensei no Wyatt Earp.

Não gosto quando meus amigos xingam os conservadores. Minha dedicação às palavras me impede de concordar quando alguém usa um termo de significado tão preciso em um sentido alterado.  Não há nada de moralmente errado em ser conservador.  O Irlandês, por exemplo, é um filme conservador. Da narrativa linear dos acontecimentos à locução em off, dos personagens aos atores, da fotografia à trilha, tudinho é reconhecível e previsível, mas se não fosse pelo tio Jorge, pelo Brenno, pela Marvel e pelo xerife Earp, eu talvez tivesse perdido o ponto central do filme.

Não faz muito tempo, Brenno postou no nosso grupo no Facebook a famigerada notícia do Scorcese esculhambando os filmes da Marvel – que não considerava cinema porque “não é o cinema de seres humanos transmitindo experiências emocionais e psicológicas a outro ser humano”.  A coisa rendeu, Scorcese tentou consertar, mas ficou no ar uma suspeita de que somente uma tremenda dor de cotovelo explicaria iniciar uma polêmica tão rasteira. Ao assistir O Irlandês, que àquela altura já estava na agulha, tudo ficou claro. Vou explicar à la Dumbledore: é preciso muita coragem (e maestria) para fazer um filme óbvio nos tempos que correm.

Não é necessário muita ginástica pra sacar que a filmografia do Scorcese entende o cinema como uma arte da memória da vivência humana. Impossível não ver na amizade entre os personagens deste filme uma alegoria da amizade entre atores, diretor e produtor. Scorcese reuniu sua turma para mais um filme de gangster, jogou âncora num fato real, mandou ver no andamento que a gente reconhece já no primeiro acorde, e realizou o que faz de melhor.  E, antes que alguém lhe decretasse a morte artística, filosofou sobre a morte não definitiva. Eu disse que não havia surpresa? Pois tem, a metáfora parece um tiquinho deslocada, mas é bem boa.

Enquanto isso, os colecionadores de quadrinhos discutem porque a Marvel mata no cinema um de seus personagens mais queridos na atualidade. Mas é claro que não é essa a grande diferença entre os dois gêneros.  A diferença está mesmo na função moralizante, que apela aos bons sentimentos humanos e que sobra nas narrativas de ficção e fantasia. Heroísmo, sacrifício, renúncia. Não dá pra esperar tanto em histórias de assassinos que matam a sangue frio e pelas costas, mesmo que não tenham nada contra suas vítimas.

O irlandês, que pouco fala e sorri menos ainda, parece crer que há redenção na passagem do tempo, mas já sabemos que ela não é garantia de nada, nem de evolução.  O que me levou a imaginar como alguém do Velho Oeste, como o xerife Wyatt Earp ou qualquer outro fodão empoeirado dos duelos praticados olho no olho, reagiria aos crimes enfatiotados e covardes da máfia italiana, especialmente nessa versão realista e não glamourizada.  Barbárie, é o que diriam. 

Tio Jorge entrou nessa história porque, além de fã do De Niro e grande adepto da literatura de fantasia, tem sempre respostas perfeitamente claras para as dúvidas mais confusas que alguém levante. Diante da minha angústia frente ao momento político que atravessamos, ele diz, enquanto corta um pedaço de queijo, que a vida ficou complexa demais para o homem comum que apenas quer de volta um tempo onde tudo lhe parecia mais simples, quando era possível ter o mesmo emprego de seu pai ou avô, onde tudo se organizava como antes.  E conclui: pessoas assustadas estão sempre dispostas a acreditar no primeiro esperto que lhes prometa um retorno à segurança. 

Meu tio é um leitor raro, que confere o último livro do Noah Harari e não perde um de Vargas Llosa enquanto aguarda a continuação da mais cabeluda das aventuras distópicas que abundam na língua inglesa e em sua estante, onde cidades motorizadas se deslocam inteiras (Mortal Engines, de Philip Reeve) e os lobos falam (The Farseer Trilogy, de  Robin Hobb).  Contei a ele que jovens autores brasileiros estão embarcando no gênero, em livros, quadrinhos e filmes, como o recém lançado Gambiarra, um universo transmídia carioca que inclui vídeo, HQ e jogo de RPG. Acho que são progressistas e ainda têm esperança, falei. E ele me sorriu de volta, mas pareceu um sorriso irlandês.

Saiba mais:

Trailer de O Irlandês: https://www.youtube.com/watch?v=Ze0bDn7Tc9Q

Conheça o universo Gambiarra:  

Veja o vídeo - https://www.youtube.com/watch?v=71vBCE7eh00&t=56s

Veja a HQ - https://www.cinemapetisco.com.br/copia-hq4

Para todos aqueles que veem os jovens em seus smartphones como motivo para lamentar a morte da literatura, a Biblioteca Pública de Nova York (NYPL) tem uma novidade.

Era mais ou menos isso que dizia a chamada de uma campanha realizada em 2018 para divulgar um novo projeto da NYPL. Buscando levantar o interesse das pessoas pela leitura, a biblioteca voltou-se para o universo das redes sociais com uma ideia diferente.  E se usassem a ferramenta Stories do Instagram para...

Para todos aqueles que veem os jovens em seus smartphones como motivo para lamentar a morte da literatura, a Biblioteca Pública de Nova York (NYPL) tem uma novidade.

Era mais ou menos isso que dizia a chamada de uma campanha realizada em 2018 para divulgar um novo projeto da NYPL. Buscando levantar o interesse das pessoas pela leitura, a biblioteca voltou-se para o universo das redes sociais com uma ideia diferente.  E se usassem a ferramenta Stories do Instagram para compartilhar histórias literárias? As pessoas que associam as mídias sociais a curtos períodos de atenção devem ter duvidado, mas a biblioteca provou que seu projeto poderia dar certo.

Para publicar textos completos de livros, foi preciso criar uma experiência de leitura atraente, tirando proveito dos pontos fortes da plataforma.  O experimento foi chamado de Insta Novels. Todos os livros compartilhados no Instagram Stories da NYPL foram redesenhados especialmente para o aplicativo. O primeiro slide é uma ilustração exclusiva de "capa" que incentiva os usuários a ler. As "páginas" apresentam palavras em uma fonte agradável (Geórgia) contra um fundo de cor suave e confortável. Há até um "descanso do polegar" no canto inferior direito do slide, onde os usuários podem segurar a tela até que estejam prontos para passar para a próxima página.  Também foram adicionadas animações no início dos capítulos e ao longo do texto, para dar vida às histórias de uma maneira que os livros convencionais não conseguem. 

Curadores da própria biblioteca escolheram cinco clássicos: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll; O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman; O corvo, de Edgar Allan Poe; Metamorfose, de Franz Kafka, e Canção de Natal, de Charles Dickens.  O primeiro, Alice, foi lançado em aproximadamente 200 slides, em dois dias.  O experimento foi bem sucedido: atraiu 13 mil seguidores nas primeiras 24 horas, fez 155 mil novos seguidores para a biblioteca e atingiu mais de 300.000 leitores. A campanha do Insta Novel arrebanhou sete prêmios no Clio Awards 2019, a mais prestigiosa premiação da publicidade internacional, inclusive um Gran Clio na categoria design.

Apesar do sucesso, não se sabe porque o projeto não foi continuado em 2019, mas a NYPL não o descartou e afirma que a iniciativa pode dar certo.  Talvez um limitador seja o fato do experimento ter sido desenhado para histórias curtas, que estejam em domínio público.

Adaptar literatura para celulares parece mesmo impor certas condições.  No Japão, após atingir um pico por volta de 1996, portanto antes da crise financeira asiática em 1997, as vendas de revistas e livros caíram rapidamente e continuaram a cair, apesar da economia se recuperar.  O fenômeno até ganhou termo próprio, moji-banare, que pode ser traduzido como "fuga da palavra escrita". No entanto, em meados dos anos 2000, notava-se que mais pessoas, particularmente mulheres jovens, estavam lendo como nunca. O que teria acontecido?

Após a virada do século, a rápida adoção de telefones celulares deu origem ao keitai shousetsu: romances escritos em celulares e entregues aos leitores em pedaços serializados (que nos faz lembrar dos folhetins publicados em jornais e revistas, surgidos na França no início do século XIX, e que rapidamente foram adotados no Brasil com grande sucesso).  O keitai shousetsu vinha em capítulos de 50 a 100 palavras, que podiam ser facilmente baixados em telefones e lidos entre as paradas em um trem ou em um intervalo do trabalho.

Sendo entregues nesse formato conveniente, os leitores que evitaram a mídia impressa responderam com entusiasmo. As histórias mais amadas foram, um tanto ironicamente, convertidas em livros impressos.  A certa altura, quatro dos cinco romances mais vendidos no Japão começaram a vida em um telefone celular.  Um dos mais conhecidos, Koizora, de 2005, escrito por Mika, teve aproximadamente 12 milhões de visualizações on-line e não foi apenas publicado, mas também transformado em filme, cujo faturamento ultrapassou 36 milhões de dólares no Japão e internacionalmente.

Para nós ficam, portanto, duas experiências a serem copiadas: a japonesa, que em sua origem destinava-se ao público feminino, com histórias de forte cunho sentimental, e a americana, que seleciona e embala textos clássicos para serem degustados em novo formato.

Veja mais:

Veja as capas animadas dos cinco livros (a de The Metamorphosis tem a mais fofa das baratas):

 https://mothernewyork.com/work/insta-novels/

A série de livros criada por Philip Reeve em 2001 devia ter ocupado esse espaço em 2018, quando começou a ser editada no Brasil. Voltamos a lembrar dela por ter sido citada no texto que está em leitura sobre o mais recente filme de Martin Scorcese, lançado na Netflix.  Ao que parece, um bom filme não é suficiente para o público da plataforma de streaming, é preciso entregar mais. Não é a concatenada e bem produzida construção de uma história, muito menos a sua...

A série de livros criada por Philip Reeve em 2001 devia ter ocupado esse espaço em 2018, quando começou a ser editada no Brasil. Voltamos a lembrar dela por ter sido citada no texto que está em leitura sobre o mais recente filme de Martin Scorcese, lançado na Netflix.  Ao que parece, um bom filme não é suficiente para o público da plataforma de streaming, é preciso entregar mais. Não é a concatenada e bem produzida construção de uma história, muito menos a sua extensão, que determina o interesse do público, mas reviravoltas e acontecimentos surpreendentes, não importa se factíveis ou coerentes. GOT alargou nossa tolerância. Nos surpreenda, parece exigir o coro da audiência.

Então, é assim: quanto mais engenhosa for a trama, melhor. Pois Mortal Engines (Máquinas Mortais) tem isso de montão e pode saciar quem tem fome de emoções fortes. Mas, atenção, estamos falando do(s) livro(s), já que a adaptação cinematográfica do primeiro volume da série botou água no feijão e abrandou vários aspectos da história, a começar pela protagonista, Hester Shaw. O filme foi um fracasso retumbante, mesmo trazendo assinaturas como a de Peter Jackson & cia.

No livro, Hester é uma jovem marcada, não apenas fisicamente, mas também em sua alma. Destemida, guerreira, violenta e mutilada pelo ataque que resultou na morte de sua mãe, que ela quer vingar a qualquer preço, Hester fica entre Lisbeth Salander, a protagonista da série sueca Millenium que já baixou em três atrizes do cinema (Noomi Rapace, Rooney Mara e Claire Foy), e a Imperatriz Furiosa, de Mad Max: Estrada da Fúria, interpretada por Charlize Teron. 

Ambientada em algum momento após um conflito cataclísmico, a série inova quando cria um mundo de cidades guerreiras que se movimentam por tração e se atacam mutuamente para garantir, através da pilhagem, os recursos que já foram exauridos do planeta. Entre todas, Londres é a mais letal. Regulada por um sistema chamado darwinismo municipal, a sociedade urbana organiza-se em guildas, ou corporações de ofício, das quais as mais influentes são a dos historiadores, que detêm a memória de acontecimentos de eras anteriores, e a dos engenheiros, que lideram na busca e identificação dos artefatos tecnológicos determinantes para a sobrevivência de todos.

Em oposição às cidades caçadoras, há a Liga Anti-Tração, que desenvolveu uma civilização alternativa em cidades tradicionais protegidas pela Muralha de Escudos, a quem pertence a aeronauta Ana Fang. Além dessas personagens femininas, há Tom, jovem aprendiz de historiador que viverá uma conturbada história de amor com Hester ao longo de toda a série, e Shrike, um ciborg que os persegue incessantemente.

O Ouro do Predador e Máquinas Infernais são o segundo e terceiro volumes da série publicada pela Novo Século, que só melhora à medida que avança. O quarto volume, A Darkling Plain, ainda não foi lançado no Brasil.

Como acontecia com os autores ingleses nos anos 80, Neil Gaiman pareceu surgir do nada e começou escrevendo a releitura de um persongem esquecido da DC comics. O sucesso de seu primeiro trabalho nos EUA, a minisérie que recria a Orquídea Negra, lhe deu aval para uma proposta maior e mais ousada: uma revista mensal com um projeto de longo prazo e liberdade editoral quase total usando um personagem da editora que não tivesse título próprio nem...

Como acontecia com os autores ingleses nos anos 80, Neil Gaiman pareceu surgir do nada e começou escrevendo a releitura de um persongem esquecido da DC comics. O sucesso de seu primeiro trabalho nos EUA, a minisérie que recria a Orquídea Negra, lhe deu aval para uma proposta maior e mais ousada: uma revista mensal com um projeto de longo prazo e liberdade editoral quase total usando um personagem da editora que não tivesse título próprio nem relação direta com as estrelas da casa – Superman, Batman, Mulher-Maravilha...

Assim surgiu Sandman, um projeto que fugia totalmente do conceito de super-herói e lidava com mitologias, magia, psicanálise e situações que pareciam retiradas diretamente do inconsciente coletivo da humanidade. Gaiman elabarou um conceito que estrapola as ideias de história e religião para explicar como os seres sapientes do universo – e não apenas o homem – pensam e agem. Tudo isso apenas para pano de fundo de suas histórias.

Sandman é tão invador, que criou um contracenso: o leitor que não gosta de quadrinhos mas ama as aventuras do personagem. A revista durou 75 números, fora os extras, e contou com várias edições especiais publicadas no Brasil. Os encadernados dos arcos do títulos sempre estão entre as mais requistadas HQs nas livrarias.